domingo, 8 de janeiro de 2017

Dom Arns favoreceu a liberdade?


Estilhaçando uma cláusula pétrea

Péricles Capanema

“Não serão objetos de deliberação diz a Constituição, artigo 60, § 4º , a forma federativa de Estado, o voto secreto, direto, universal e periódico; a separação dos Poderes; os direitos e garantias individuais. Interdições, são chamadas cláusulas pétreas.

Existem cláusulas pétreas fora da Constituição, nos mais variados âmbitos, social, familiar, profissional. Proibições severas, sentidas por todos, têm o efeito de verdadeiros fatwas, cuja violação acarreta sanções graves.

Pensava nelas enquanto lia o volumoso noticiário relativo ao falecimento de dom Paulo Evaristo Arns em 14 de dezembro último aos 95 anos. À maneira de cláusulas pétreas, havia temas que não podiam ser levantados. Vou correr o risco, estilhaçando uma.

Suas exéquias representaram consagração raras vezes presenciada no Brasil, esteve pouco aquém das homenagens prestadas a Tancredo Neves em abril de 1985. Três dias de luto oficial, cerimônias pomposas, elogios e ditirambos de todos os quadrantes. O fumo fresco do incenso proclamava em uníssono, dedicou a vida aos pobres e à defesa dos direitos humanos.

Apenas como exemplo, o preito dos três últimos presidentes. Michel Temer: “Dom Paulo foi um defensor da liberdade e sempre teve como norte a construção de uma sociedade justa e igualitária. O Brasil perde um defensor da liberdade e ganha [...] um personagem que deixa lições para serem lembradas eternamente”. Dilma Rousseff: “Grande líder progressista, incansável na defesa dos direitos humanos e da liberdade [...] símbolo da luta pela democracia. O Brasil perde um defensor dos pobres. [...] Descanse em paz, amigo do povo”.

Lula: “O mundo perde um vulto gigante na defesa universal dos direitos humanos. [...] Franciscano que era, seguiu o exemplo de seu mestre para seguir uma clara opção preferencial pelos oprimidos em sua Igreja da Libertação. Semeou e cultivou Comunidades Eclesiais de Base, revolucionou a formação dos seminários”. Já não presidente, mas do governador Geraldo Alckmin: “Ao longo da vida, ele escolheu a linha de frente para defender os mais fracos e os feridos pela injustiça. Ajudou, assim, a mudar a história do Brasil”.

O tom geral foi esse. Sei, conta o de mortuis nil nisi bonum, dos mortos só se devem dizer coisas boas. A exceção, personagens históricos; dom Paulo foi um deles. No Brasil, a mais destacada figura da esquerda católica na segunda metade do século 20, corifeu do progressismo litúrgico e do esquerdismo social e político.

Os jornais relataram ainda, embora em tom menor, os choques do antigo arcebispo de São Paulo com João Paulo II. O Pontífice polonês conhecia bem os horrores do comunismo e acompanhava com fundadas reservas a atuação do antístite paulistano que favorecia aqui o que lá ele combatia.

Foi também noticiado que dom Paulo seguia orientação oposta à dos dois últimos pontífices, João Paulo II e Bento XVI (1978-2013). Chocou-se pública e rumorosamente com o cardeal Ratzinger, quando o na ocasião Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, apoiado pelo Papa, aplicou sanções justas ao então frei Leonardo Boff.

Um aspecto da atuação pública de dom Paulo Evaristo não foi ventilado (procurei nos jornais, não encontrei): o favorecedor de tiranias. Embora tantas vezes contraintuitivo, nem sempre quem guerreia pelos direitos humanos, favorece a liberdade. Pode ajudar o totalitarismo e infelizmente foi o caso dele.

A atuação pública de dom Paulo beneficiou os que, por doutrina e em documentos programáticos, apunhalam as liberdades naturais. Bastaria mencionar a promoção das comunidades eclesiais de base, sementeira de boa parte dos quadros mais extremados do PT e de outros partidos de esquerda. Ainda o apoio à Teologia da Libertação, que buscou em Marx sua base para análise social (e ali está a pregação da luta de classes e da ditadura do proletariado).

O que faz hoje no Brasil o MST e a Pastoral da Terra? Não ocultam suas metas coletivistas, encharcadas de tirania. Não escondem seu culto a Fidel Castro (modelo), o mais sanguinário e cruel tirano da América Latina. A respeito, é penosa a constatação, seguem trilha aberta pelo antigo arcebispo. O Estadão de 19 de janeiro de 1989 publicou carta de dom Paulo a Fidel Castro, na qual o Purpurado afirma:

“Queridíssimo Fidel, [...] Aproveito a viagem de frei Betto para lhe enviar um abraço e saudar o povo cubano por ocasião deste 30º aniversário da Revolução”. [NB: Não custa lembrar, revolução comunista ateia, que trouxe miséria pavorosa e ditadura feroz para Cuba].

Aí dom Paulo, para conseguir elogiar Castro, com particular cuidado esbofeteia a verdade: “O povo de seu País conseguiu resistir às agressões externas para erradicar a miséria. [...] Hoje em dia Cuba pode sentir-se orgulhosa de ser [...] exemplo de justiça social. A fé cristã descobre nas conquistas da Revolução um ensaio do Reino de Deus”.

Indica esperanças: “Confio que nossas comunidades eclesiais de base saberão preservar as sementes da nova vida. [...] Receba meu fraternal abraço nos festejos do 30º aniversário da Revolução Cubana”. Coerentemente, o cardeal-arcebispo beneficiou aqui com seu poder e prestígio, correntes que, não fosse a recusa popular, nos precipitariam em situação parecida com a tragédia vivida pelos cubanos (menos os da Nomenklatura). Ou dos venezuelanos, com a exceção dos donos do poder.

Verdade translúcida: a atuação de dom Paulo favoreceu tiranias de sua época e estimulou a consolidação de futuras ditaduras. Silêncio eloquente e hipócrita pesa a respeito, sobre essa constatação ninguém (ou quase ninguém) ousa falar. À maneira de cláusula pétrea, todo o Brasil sofre a interdição de exprimir o óbvio ululante. 

Vamos estilhaçá-la, a verdade pavimenta o caminho para liberdades autênticas, nas quais os pobres têm possibilidades de desenvolver suas potencialidades, o grande estímulo para crescerem. Veritas liberabit vos (Jo 8, 32). A mentira é atalho para tiranias e misérias.



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