segunda-feira, 8 de setembro de 2008

Agricultura não é problema, mas solução

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Fala quem entende:
Evaristo Eduardo de Miranda
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Evaristo Eduardo de Miranda é entusiasta dos avanços nas pesquisas com a agricultura. Nessa seara, crê em um Brasil com todas as condições para se tornar o país do futuro no quesito da sustentabilidade.
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Ecólogo com doutorado pela Universidade de Montpellier, na França – uma das mais antigas do mundo, fundada em 1220 –, chefe-geral da unidade de monitoramento por satélite da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), além de consultor da Food and Agriculture Organization (FAO) e da Unesco, ele tem 30 anos dedicados à pesquisa agropecuária.
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E defende a tecnologia (inclusive os transgênicos) para garantir o abastecimento mundial de alimentos e evoluir na produção de biocombustíveis.
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Miranda irrita-se quando o Brasil é tachado pela mídia – e até por muitos pesquisadores – como o grande vilão do planeta pelos estragos do desmatamento na Amazônia. "Somos o país que mais preserva florestas nativas, com a matriz energética mais limpa, o que menos emite CO2 por quilômetro quadrado e por habitante", declara.
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A cada dez anos, diz, os países do G8 emitem o equivalente ao que resultaria do desmatamento de toda a Amazônia. Paradoxalmente, acredita que, para salvar a grande floresta, será preciso investir em suas cidades.
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O sr. defende a idéia de que a agricultura não é problema, mas a solução sustentável para o Brasil e o mundo. Por quê?
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Existe uma opinião generalizada de que a agricultura causa problemas ambientais. Mas, se a atividade ainda emite gases de efeito estufa, sobretudo em regiões primitivas e pouco tecnificadas, nas terras do agronegócio ela é solução para o aquecimento global. Sobretudo no caso do Brasil.
A agricultura trabalha com a produção primária, ou seja, com a transformação da energia solar em energia química. No caso da cana, por exemplo, acontece a transformação da energia do Sol na do açúcar e do álcool. Dessa forma, a agricultura é capaz de trazer soluções enormes para a sustentabilidade.
O exemplo disso, hoje, é a matriz energética brasileira. A nossa agricultura produz mais de 140 milhões de toneladas de grãos para nós e para o mundo e consome cerca de 4,5% de nossa matriz energética, mas garante quase 30% dessa matriz.
Enquanto a média da energia renovável dos outros países é inferior a 14%, no Brasil temos pouco mais de 46% da matriz renovável, o que é muito.
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O cultivo da cana é então um modo de combater as mudanças climáticas?
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A cana é uma planta extraordinária. O açúcar e o álcool são feitos basicamente de carbono, hidrogênio e oxigênio com a energia solar. A cana retira esses produtos do ar, e é um cultivo que não esgota a terra, como muita gente pensa. É uma cultura que fica no campo por seis anos. Isso é sinônimo de proteção ao solo, por causa de sua grande massa verde e suas raízes profundas.
O consumo do álcool hidratado em 2007 aumentou 46%, no Brasil. O anidro, que é misturado à gasolina, subiu 20%, enquanto o consumo de gasolina caiu cerca de 3%. Hoje estamos consumindo por volta de 18 bilhões de litros de gasolina e quase 17 bilhões de litros de álcool. Isso significa toneladas de carbono que deixamos de emitir à atmosfera, em milhões em veículos que não contribuem nem para o aquecimento global, nem para a poluição.
Não fosse a alternativa do álcool, a qualidade do ar dos grandes centros urbanos brasileiros estaria insuportável, muito pior do que hoje. E não é só. Em parte das usinas de cana do país, o bagaço é usado para gerar energia elétrica – uma fonte que já representa 4% dessa energia no Brasil. Em São Paulo significa 9%, mas há períodos em que os números chegam a quase 20%, como entre junho e agosto, época da colheita da cana-de-açúcar.
Ela tem valor bem no momento em que mais precisamos, pois o volume de águas dos rios está mais baixo. Nessa época se acionam as termoelétricas que usam o gás vindo da Bolívia, o que contribui para a emissão de CO2. As usinas têm caldeiras, do tamanho de prédios de 15 andares, que produzem energia com eficiência.
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Não há risco de se fazer da Amazônia um imenso canavial, como muitos temem?
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Não acredito nisso. Acho que a cana-de-açúcar tem potencial na região, sem nenhum risco para a floresta. Outra lenda é a de que o solo da Amazônia está sendo degradado pelo plantio de soja, algodão e outros víveres.
Para ter uma idéia, só neste ano 39% da produção de soja do Brasil veio da Amazônia, além de 47% da de algodão e 20% da de grãos. A maior produtividade de soja do mundo está na Amazônia. É preciso entender que não estamos mais fazendo agricultura como no período Neolítico. Hoje há muita tecnologia disponível nessa área.
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Mas como cultivar mais sem devastar a floresta?
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Trabalhando em áreas de pastagem ou que já estejam desmatadas. Não há necessidade de derrubar mais floresta para isso, a não ser em casos muito específicos. Tanto que, com isso, se está até mesmo dando viabilidade econômica para assentamentos rurais que estavam em situação ruim.
Muitos desses assentamentos são verdadeiras favelas rurais. Dessa maneira é possível criar uma atividade sustentável do ponto de vista econômico, social e ambiental.
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Em que outros setores a cana-de-açúcar pode contribuir para a sustentabilidade?
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A cana também é uma importante matéria-prima para substituir o petróleo e muitos produtos. Assim como existe uma petroquímica, desenvolveu-se no Brasil uma alcoolquímica. É uma indústria química orgânica baseada na molécula do álcool e não na do petróleo para a transformação de derivados.
Essa indústria teve início com componentes líquidos de emprego farmacêutico. Depois se passou a produzir plásticos biodegradados, ou seja, polimerizados por bactérias transgênicas. Estas fazem rapidamente o trabalho de polimerização, que, no caso do petróleo, precisou ser elaborado durante milhões de anos.
No início, a maioria desses plásticos feitos da cana eram pouco resistentes. Hoje já é possível produzir plásticos mais duráveis e, daqui a pouco tempo, chegaremos à produção do PVC para uso na construção civil.
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E o biodiesel?
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Esse é outro caso em que a agricultura pode ajudar muito o planeta, no sentido de produzir um diesel enriquecido com óleo vegetal. No clima úmido da Amazônia temos muitas palmeiras, em especial o dendê. No semi-árido, a mamona. Nas áreas de cerrado há sobretudo a soja. No extremo sul do país encontramos a canola.
Então, temos à disposição óleos de diversas fontes para produzir biocombustível. A mistura de óleos vegetais com o diesel do petróleo, hoje, é de 2% e vai passar a 5%. O maior problema com o biodiesel é que está havendo uma competição muito grande por alimentos, e os óleos vegetais são quase todos comestíveis, com exceção da mamona.
Por isso já existem pesquisas sobre seleção de organismos geneticamente modificados para gerar plantas transgênicas capazes de produzir muito mais óleo e com maior qualidade.
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Tudo isso o deixa entusiasmado?
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Muito. Com tecnologia, a agricultura brasileira não precisa crescer espacialmente nem desmatar, ao menos nos próximos 50 anos. Claro que isso não se aplica ao país inteiro. Em alguns lugares é preciso desmatar neste ano, como em certas regiões da Amazônia onde há famílias de agricultores instalados há 40 ou 50 anos. Deve-se pensar que essas famílias crescem e têm direito a expandir seus negócios.
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Isso é polêmico. Essas pessoas não poderiam viver do extrativismo de produtos regionais, como o açaí e o cupuaçu?
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Elas não conseguem viver do extrativismo. Desafio alguém a provar o contrário. Quem vive do extrativismo, hoje, vive mal, com níveis de renda baixíssimos, sem assistência médica, além de isolado na floresta. Acredito que em algumas áreas ele até possa funcionar, mas, no geral, não é alternativa viável.
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Por que o senhor tem tanta certeza disso?
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Porque, para que qualquer planta nativa dê certo e não corra risco de extinção, ela precisa ser domesticada para a agricultura. Isso é uma regra, e cito como exemplo o guaraná. Sem essa intervenção, não haveria como abastecer as indústrias de refrigerante e cosmético que utilizam a fruta em seus produtos.
O jaborandi, por outro lado – que é o único remédio contra o glaucoma e é usado na cosmética –, não foi domesticado de início. A extração da árvore exterminou a espécie em muitas regiões, até que ela foi cultivada para atender às necessidades da indústria. O ciclo extrativista funciona assim: descobre-se uma planta com potencial para a produção de remédios ou cosméticos e daí ela passa a ser extraída da natureza.
Se o ciclo dá certo, há uma tragédia, porque a planta é dizimada em poucos anos. Por outro lado, se for possível domesticá-la, abre-se novo ciclo. Cultiva-se a planta industrialmente e assim se preserva a espécie.
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Com os transgênicos esse ciclo está sendo encurtado?
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Para aperfeiçoar a produção de um medicamento é possível transferir os genes de determinada planta para as bactérias, e elas fazem o trabalho de fabricar esse fármaco. Isso pode ser feito também quimicamente, como aconteceu com a essência do pau-rosa, usada pela Chanel na produção do famoso perfume Número 5.
A árvore era explorada na floresta, mas foi ficando cada vez mais rara – seu tronco era cortado para extrair a essência do perfume. Então a indústria sintetizou a essência em laboratório.
É por isso que não há como certos extrativismos serem sustentáveis. Mesmo que se descubram na Amazônia inúmeros fármacos, o extrativismo não vai gerar empregos em massa, porque, assim que se localize nova planta com potencial farmacêutico, a indústria vai sintetizar o agente ativo ou produzi-lo por transgenia.
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O que senhor pensa a respeito dos transgênicos?
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Sou a favor da pesquisa e do avanço nessa área. Pouca gente sabe, mas toda a insulina encontrada hoje no Brasil é produzida por bactérias transgênicas, além de uma série de outros remédios. Muitos alimentos também estão sendo modificados para melhorar a sua qualidade nutricional.
Com relação ao meio ambiente, se pegarmos o caso do Rio Grande do Sul e do Paraná, onde se planta soja transgênica há mais de dez anos, houve uma melhoria impressionante das condições ambientais. Nas plantações locais não há mais o uso de pesticidas, já que as plantas são mais resistentes a pragas e doenças.
Os agricultores festejam a proliferação de peixes nos rios, pássaros e outros animais nas regiões de cultivo. Não só: a diminuição da emissão de CO2 também foi imensa. Quando se pulveriza o campo com pesticidas, é preciso passar várias vezes com o trator pelas plantações, queimando muito combustível. Sem contar que os defensivos agrícolas são produzidos com petróleo.
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Que outros aspectos garantem ao Brasil uma agricultura sustentável?
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Nós praticamos uma lavoura de ciclo longo. No hemisfério norte, a agricultura é de ciclo curto. Lá, planta-se na primavera para colher no verão. Dessa forma, a duração de cultivos como trigo, aveia, cevada ou milho é de 100 dias, no máximo. No resto do ano, com os invernos rigorosos e a falta de Sol, não há cultivo nem fotossíntese. No Brasil, ao contrário, há fotossíntese o ano inteiro com as culturas de ciclo longo.
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Então a fotossíntese gerada pelos cultivos é importante para o meio ambiente?
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Acredito que a agricultura contribui nesse sentido porque estamos falando de uma energia renovável. Vamos imaginar que, no fim de agosto, um agricultor queime a palha de 100 toneladas de cana-de-açúcar por hectare para facilitar a colheita.
O resultado serão 15 toneladas de CO2 liberadas na atmosfera. Em seguida ele esmaga a cana e queima o bagaço para gerar energia elétrica. Mais 35 toneladas de carbono vão para o ar. As restantes 50 toneladas se transformam em álcool ou açúcar que serão queimados no consumo do açúcar e na combustão do álcool pelos carros.
Assim, as 100 toneladas de CO2 voltam integralmente à atmosfera. Só que em setembro chove muito, e aquele campo que foi colhido volta a crescer. Para isso a cana vai retirar novamente da atmosfera as 100 toneladas de CO2.
Então quem é contra o cultivo da cana só pensa nos primeiros seis meses em que a colheita lança o dióxido de carbono no ar. Mas esquecem de que, quando ela cresce, retira novamente todo o CO2 liberado antes. E toda essa energia da fotossíntese vem do Sol, que temos aqui durante todo o ano.
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Com relação à expansão da pecuária na Amazônia, o senhor também não vê problemas?
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Não. Assim como você e eu, os moradores da Amazônia também querem qualidade de vida. Por isso, em regiões como a da Reserva Extrativista Chico Mendes, no Acre, o desmatamento chega a quase 40%. Os seringueiros sabem qual é o retorno de uma hora de trabalho no seringal e perceberam as vantagens de trabalhar com a pecuária.
Esse fato faz com que em várias cidades do Acre os nativos e seus filhos possam tomar iogurte e comer queijo. O que para nós é um hábito trivial para eles é algo novo e bom, porque eles nunca tiveram essa possibilidade.
Que direito temos nós – que vivemos aqui no Sul, gostamos de consumir leite e picanha e somos altamente poluidores – de afirmar que um seringueiro no Acre não pode ter essas mesmas oportunidades de consumo ou melhorar sua renda?
Há uma questão ética nisso tudo muito séria. Nós não estamos ouvindo o que o homem amazônico realmente quer para a vida dele e ditamos regras das quais ele talvez não queira aceitar seguir.
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Sendo assim, como não fazer da Amazônia um imenso pasto?
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Não repetindo os erros do passado. Se quisermos deter o desmatamento indiscriminado, será preciso investir no fortalecimento das cidades amazônicas. Elas são as grandes alternativas de emprego e renda para as populações da região.
As cidades precisam tirar gente do campo. O êxodo rural que não queríamos décadas atrás é algo que precisamos agora promover na Amazônia. Só assim é possível retirar a pressão sobre a mata. Por que não há desmatamento em Manaus?
Se observarmos uma imagem de satélite da capital do Amazonas veremos que não existe desmatamento em uma cidade incrustada na floresta com 2 milhões de habitantes.
A explicação é que ninguém é louco de se meter no meio do mato para ganhar a vida, sujeito a doenças e picada de cobra. Porque ele sabe que, se for vender pirulito na esquina de sua cidade, vai ganhar bem mais, ter segurança, escola para os filhos e hospital. Quando a cidade gera emprego e renda, ninguém vai pro mato caçar bicho ou tirar madeira.
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Como o senhor vê o ambientalismo no Brasil hoje?
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O ambientalismo passou de um período de mobilização no fim da década de 1970, em especial diante de eventos que tiveram em sua origem as atividades urbanas e energético-mineradoras, como a poluição em Cubatão, o desmatamento da mata Atlântica e a contaminação do rio Guaíba, em Porto Alegre, pela fábrica Riocel. Era uma fase de denúncias.
Depois da Rio-92 o movimento começou a migrar para a busca de soluções integradas com a sociedade, que é o que se vê até hoje, com campanhas focadas e a busca de resultados mais concretos.
Tudo isso é bastante satisfatório. Entretanto, acredito que o movimento não entendeu o conceito de desenvolvimento sustentável – o tripé economicamente viável, socialmente justo e culturalmente aceito. Aqui, a maioria dos ativistas só se preocupa com o aspecto ambiental, esquecendo as outras duas premissas.
Acho também que outra tendência perigosa é tratar o assunto de maneira apocalíptica. Só se prevêem coisas ruins com as mudanças climáticas. É preciso trazer outros pontos de vista. Por exemplo, o desaparecimento da calota polar vai gerar uma economia de combustível inacreditável, porque vai encurtar caminhos na navegação.
É preciso lançar um pouco de racionalidade à questão, sobretudo quando se trata de hipótese inverificável. É curioso como os cientistas, senhores da razão e ateus, adotam nessa hora uma linguagem totalmente religiosa. Eles falam de toda a teologia do fim dos tempos, das catástrofes, do homem vitimado e castigado com o dilúvio, como Noé.
É quando se começa a praticar o "cientismo", ou seja, a idéia de que a ciência explica e resolve todos os nossos problemas. Essa característica é um desvio da razão, pois, se é verdade que a ciência é crítica, em primeiro lugar deve ser crítica de si mesma. Até mesmo Einstein questionava antes de tudo a si próprio.
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